sexta-feira, maio 19, 2006

Escravidão

Outro dia, tentei escrever alguma coisa a cerca do 13 de maio e a comemoração da Lei Aurea. Naquele momento não consegui articular um bom texto, mas hoje, em uma das minhas visitas ao Blog do Noblat li um artigo simplesmente fenomenal.

É um exemplo do texto "diz tudo".
Como já mencionado, o artigo foi achado do site Blogdonoblat.com.br, mas é de autoria de Ruy Fabiano, jornalista.

O texto integral segue abaixo.


A escravidão e a crise

Ruy Fabiano

Joaquim Nabuco, uma das lideranças abolicionistas mais expressivas do século XIX, previu que, durante muito tempo, o Brasil viveria os reflexos adversos do longo período em que foi escravocrata – mais de três séculos. É uma ferida que se recusa a cicatrizar.

Os índices alarmantes da crise social brasileira e de um de seus mais dramáticos subprodutos – a criminalidade – mostram que Nabuco acertou em cheio, mesmo sem ser profeta. Nem era necessário que o fosse. O modo como a escravidão foi abolida no Brasil tornou a Lei Áurea não um diploma libertador, mas a primeira demissão coletiva de nossa história.

Os escravos não foram indenizados, nem guarnecidos por qualquer programa de governo que os incluísse socialmente. Não receberam terras, não tiveram acesso à educação. Foram se ajeitando como puderam – e lhes foi permitido - nas periferias das cidades, submetendo-se a subempregos e biscates, tão dependentes quanto antes da casa grande, só que, uma vez “libertos”, sem a contrapartida da senzala.

Passou a vigorar aquilo que, na gíria dos malandros cariocas, chama-se de “lei de murici” – cada um que trate de si. Enquanto escravos, tinham ao menos quem deles cuidasse e alimentasse, já que constituíam patrimônio de grande liquidez.

Escravo sadio era cheque ao portador. Poderia ser usado para quitar débitos, servir de aval em negociações bancárias ou mesmo constituir dote nas transações matrimoniais dos seus senhores.

A abolição, nos termos em que se processou, submeteu aquele imenso contingente de seres humanos a condições ainda mais iníquas que as da escravidão. Sem liderança e sem ter quem por eles falasse, restou-lhes submeter-se ao novo cativeiro, que prossegue até hoje.

Um assalariado, submetido ao precaríssimo sistema de transporte e saúde, péssima alimentação, nenhum lazer e nenhuma segurança, padece mais que um escravo.

O resultado aí está: PCC, Comando Vermelho e coisas do gênero. O narcotráfico, de quebra, criou uma equação inesperada, um nó cego, para a crise social brasileira: propiciou que esse vasto contingente se capitalizasse - e se armasse até os dentes.

Hoje, no Rio e em São Paulo – e em diversas outras capitais -, há milhares e milhares de jovens, reféns do narcotráfico, servindo de mão-de-obra barata para o crime. São seres anônimos, com cujo destino ninguém se importa. Segundo a OAB, há, na periferia de São Paulo, cerca de 1 milhão de jovens, entre 16 e 24 anos, que nem estudam, nem trabalham – nem têm a perspectiva de uma coisa ou de outra. São vistos como insetos pela classe dominante.

Os jornais dão conta de que a polícia já eliminou (escrevo na manhã desta quinta, 18.05) 93 deles, nestes dias de conflito. Como os conflitos prosseguem e a paranóia deve aumentar, esse número ultrapassará fácil, fácil a casa da centena. Imagine-se que garantias terá um jovem negro ou mulato, surpreendido numa rua da periferia paulistana, à noite, ao ser percebido por um policial (que, em regra, é também jovem e mestiço e mora igualmente na periferia).

É ali que os suspeitos estão sendo eliminados, aos montes. A maioria nem é identificada. São “presuntos” (a terminologia é quase oficial, usada com naturalidade por policiais e repórteres do setor), despejados no Instituto Médico Legal.

Estimativas oficiais indicam que, em todo o país, o número de jovens ociosos entre 16 e 24 anos chega a 7 milhões – contingente superior às populações somadas do Uruguai e do Paraguai. A economia do país, por seu turno, há anos cresce a índices vegetativos, sem gerar empregos e perspectivas. Ano passado, foi de pouco mais de 2%, equivalente à do Haiti, país em guerra civil e um dos mais pobres do planeta.

O governador de São Paulo, Cláudio Lembo, em surpreendente entrevista a Mônica Bérgamo, da Folha de S.Paulo (surpreendente para um político conservador, do PFL), não hesita em debitar à “burguesia branca e perversa” a responsabilidade pela crise social – e, portanto, pela guerra urbana de São Paulo. Menciona as circunstâncias espúrias em que foi feita a abolição da escravidão no Brasil, em que o senhor - e não o escravo - foi indenizado.

Lembra que, no Brasil, essa mesma burguesia, que dá entrevistas indignadas à imprensa, cobrando providências contra a crise social, “explora a sociedade, seus serviçais, explora todos os serviços públicos”. E ainda: “Querem (os burgueses) estar sempre nos palácios dos governos porque querem ter benesses do governo. Isso não vai ter aqui nesses oito meses [prazo que resta para Lembo deixar o governo].”

Num crescendo de indignação, avisa: “A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira, no sentido de haver mais empregos, mais educação, mais solidariedade, mais diálogo e reciprocidade de situações.”

Nem a esquerda está sendo tão áspera em sua retórica. Será que a burguesia – de que Lembo é esplêndido um exemplar – finalmente acordou? Ou será apenas mais um espasmo?

Há dias, a propósito da celebração de mais um 13 de maio (o 118º desde a Lei Áurea), foi divulgado um documento inédito – e altamente oportuno – da História do Brasil: uma carta da Princesa Isabel, datada de 11 de agosto de 1889 (um ano e três meses após a abolição), endereçada ao Visconde de Santa Victória, dando conta dos esforços, dela e de seu pai, Dom Pedro II, para prover condições dignas de sobrevivência e inserção social dos ex-escravos.

A princesa defende indenização aos recém-libertos, constituição de um fundo para compra e doação de terras pelo Estado e ajuda pecuniária para a exploração agrária. Em vez de gerar efeitos, o documento foi mantido secreto. Só agora veio à luz, coincidindo com a eclosão da guerra urbana de São Paulo.

A Abolição brasileira, além de pôr em cena outra forma de escravidão, acabou sendo estopim de uma espúria aliança, que uniu ex-escravocratas inconformados a republicanos exaltados – e ambos, sob o comando dos militares, proclamaram a República.

Isso explica a tortuosa trajetória de nossa república, que jamais fez jus ao seu sentido etimológico. No Brasil, como bem lembrou Cláudio Lembo, a república não é pública. É privada – e precisa ser urgentemente reproclamada.

Com a palavra, os candidatos à Presidência.

Um comentário:

Unknown disse...

Excelente texto. Eu já tinha lido a entrevista do Lembo (que, admito, tomei como pura demagogia) e vou reler com mais atenção. Será isso, junto com o gol do Belleti na final da Liga dos Campeões, algum tipo de sinal?