Você já pensou na possibilidade de algum dia acordarmos do grande sono e descobrirmos que não somos indivíduos, que não somos seres humano, mas apenas um produto ou uma personagem de um grande espetáculo, de um grande comercial de TV?
Lula Miranda
A mãe de Oscar Wilde solicitou expressamente em seu testamento que fosse cremada, e que suas cinzas fossem lançadas do alto de uma colina – justificava esse pedido salientando a sua repulsa e ojeriza diante da possibilidade de ser enterrada ao lado de um – arre! – comerciante. “Impensável!” – vejo-a exclamar. Diatribes de nobre e poeta.
As idiossincrasias da aristocracia são coisa do passado e, hoje, o chamado setor terciário (comércio e serviços), é essencial à nossa economia e dá emprego a uma enorme massa de trabalhadores, assalariados por assim dizer. Mas, e quanto a isso não resta a menor dúvida, é fato que a nossa sociedade está se tornando o reino dos comerciantes e “mascates”. A vida parece ter transformado-se numa grande feira, num grande mercado persa.
Não, não me refiro, em absoluto, aos pobres ambulantes que “infestam” as ruas das grandes cidades. Tampouco aos honestos comerciantes de secos&molhados. Reporto-me aqui a outro tipo de “mascate”. Um certo tipo de mascate, muito mais “qualificado” e respeitado socialmente. Aquele que “bagateliza” valores, aquele que liquida a sua alma a qualquer preço, aquele que topa qualquer “negócio” desde que bem remunerado. São os devotados escravos do senhor mercado, de seus produtos e quinquilharias.
Para estes peculiares “mascates” somos todos cordeiros de um grande rebanho tangido pelos pastores e gurus da modernidade, os “marketeiros”. Ou, em vez de cordeiros, seríamos todos mascates? Ou teríamos todos nos transformado em nada além de fiéis devotos do poderoso “deus” mercado e sua singular linguagem: a propaganda? Um deus em sua inescapável onipresença.
Ainda não se havia dado conta? Os sinais estão em todos os lugares, espalhados por todos os cantos. “Compre isso, compre aquilo! Use isso, use aquilo outro!” Fazem a nossa cabeça de modo subliminar, às vezes, e, quase sempre, às escâncaras, de modo grosseiro e deselegante (como jamais admitiria, por certo, a aristocracia no séc. XIX). Funciona mais ou menos como uma lavagem cerebral: “Compre! Consuma! Compre! Consuma!”.
Não há como escapar. Se estamos caminhando tranqüilos pelas ruas tropeçamos em seus refugos, em seus dejetos: folhetos, filipetas, folders, praticáveis, tótens etc. Todos lá, dispersos, emporcalhando e atravancando nossos caminhos. Se, impávidos, levantamos a cabeça, lá estão eles: estampados em cartazes, outdoors ou mesmo nas paredes dos prédios, alguns em proporções gigantescas praticamente tomam toda a paisagem. A propaganda já se elevou aos céus, nos balões e dirigíveis. A poluição visual já beira o insuportável.
Você já pensou na possibilidade de algum dia acordarmos do grande sono e descobrirmos que não somos indivíduos, que não somos seres humano, mas apenas um produto ou uma personagem de um grande espetáculo, de um grande comercial de TV? Um espetáculo de gosto duvidoso, é certo. Um espetáculo no qual a vida é acessória, onde o que importa é vender, vender cada vez mais, vender produtos e serviços. Vender e comprar, é claro.
Sou do tempo em que os “reclames” eram veiculados nos chamados intervalos comerciais. E esses intervalos eram breves. Hoje os intervalos comerciais duram uma eternidade e, não bastasse isso, as propagandas são feitas também dentro dos próprios programas. Na linha: “Assista a propaganda e ‘ganhe’ um programa” de brinde.
Nas novelas, filmes e mini-séries, a propaganda é veiculada através do que chamam de “merchandising”. Às vezes esse expediente é tão escancarado que chega a ser constrangedor, pois patético. Por vezes, criam-se cenas dentro de um roteiro, só para que sejam veiculadas essas mensagens comerciais. Durante os programas de auditório os apresentadores fazem comerciais de diversos produtos – e assim garantem seus salários astronômicos. Por incrível que pareça, já existem vários programas de auditório que são verdadeiros “shows” onde se mostram tão somente produtos. Assista a propaganda e “ganhe” um programa.
Hoje, a mídia e a indústria criam suas celebridades às pencas, para em seguida utilizá-las como garotos-propaganda e nos vender seus produtos. Não, não se preocupe, essas criaturas não necessitam da nobreza do seu pesar e comiseração, pois não estão sendo enganadas ou escravizadas. São, isso sim, muito bem remuneradas pelo que fazem. Recebem cachês e salários milionários, que lhes arrefecem um pouco a usura e, de quebra, alimentam-lhes a vaidade e soberba. Pobres criaturas?
Cá para nós, alguém aí ainda suporta ver a cara da Xuxa, do Pelé, do Gugu, da Gisele Bündchen e tantas outras, “personalidades”? – sejam de ocasião ou não. Onipresentes, estão em todos lugares, com seus rostos maquiados de extrema simpatia. “Compre isso! Compre aquilo! Compre aquilo outro!” – eles dizem em seus sorrisos encantadores. Tudo é puro encantamento, beleza e sedição. O mundo é tão... fashion?
Qual será mesmo o valor dessa moeda com a qual esses cidadãos(?), ao mesmo tempo servos e senhores dos mercados, fundamentam as suas trocas. Quais serão mesmo os valores que devem nortear a nossa vida? Dignidade não tem preço. O resto? Ah, o resto você pode comprar com o seu cartão de crédito.
Ih, sem querer, fiz a minha propagandazinha subliminar! Afinal, ninguém é de ferro – não é mesmo? E as mercadorias (olhe elas aí, gente!), hoje estão “pela hora da morte”! As pessoas, nem tanto: a preço de ocasião.
N.A – Texto extraído do livro “Balão de Ensaios – Poesia e engajamento”, já esgotado e aqui reeditado virtualmente.
Texto integralmente extraído em: http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11722&boletim_id=76&componente_id=1302