sexta-feira, junho 02, 2006

Devaneio presunçoso

Minha falta de ridículo alcançou níveis altíssimos. Me deu na cabeça que sei escrever crônicas. Mas depois de achar que sei escrever artigos de economia, até que não é um devaneio tão alto assim.
Então, dou minha cara a tapa. Ta aí, espero que os leitores tradicionais, digo, únicos, valew João (da Silva), Canário (Thiago, o outro) e Menina (seja lá quem você é); digam o que acham.

Crônica
Homem aí do lado

Nunca acordar cedo o incomodara tanto.

Com os olhos ainda bem amarelos, arrastou-se até o banheiro. Com dificuldades, abriu a porta e em movimentos automáticos executou todo o protocolo matinal que se poderia exigir de um homem naquela idade. Apesar do desconforto dessas primeiras horas, foi com prazer que abriu a calça e deixou-se inundar pela felicidade ao ver jorrar toda aquela impureza que se derramava de seu corpo.

A água fria no rosto lhe deu uma cara um pouco mais humana e uma disposição para enfrentar ao menos os próximos minutos.

Na cozinha, encontrou o café pronto, de ontem. Há muito já tinha desacostumado com os confortos do homem normal, aquele café rançoso era o suficiente para colocá-lo de pé e ir trabalhar.

Antes de sair, lembrou-se ainda que não podia sair daquele jeito, uma imagem da noite que morrera. “Onde eu estava com a cabeça”, teve ainda tempo de pensar.

Não se dava a modas e luxos, mas um emprego público exigia mais do que uma calça surrada que não ficou mal combinada com uma camisa que a muitos anos poderia ate ter sido chamada de nova. Todos aqueles anos dedicando-se ao trabalho pela sociedade, ou pelo menos ele o imaginava assim, não lhe garantiram crescimento considerável nas cadeias de comando do estado. Mas para a vida solitária que levava, o salário era até mais que o suficiente.

“O uniforme de homem trabalhar”, brincou com seus miolos, e estranhou o senso de humor naquela hora da manhã.

Foi mesmo como um bravo soldado que enfrentou o ônibus lotado, mas a vida ainda lhe sorria. Morando em um dos primeiros pontos daquela linha, pôde achar um lugar para sentar, na janela, como preferia, e naquela quase uma hora que se arrastou, assistiu a vida borbulhar na cidade grande.

Lembrou-se que enquanto criança sonhava em viver junto com todas aquelas pessoas, uma vida de aventura, sem rotinas ou monotonias. Ainda naquela época, achava que a vida no interior não era para ele. “E veja-me agora, um homem metropolitano”, vangloriava-se. Mas o rosto cansado pelos anos, mas especialmente pela semana, não lhe negavam um ar cansado e melancólico; e foi assim que desceu do ônibus, não só um entre muitos, porquê naquele momento teve tempo de chamar a atenção de um garoto perdido no passeio.

“Me dá um real, moço?”, a frase não veio só, amparada pelo olhar que só uma criança poderia fazê-lo, com o tom que só um pedinte faminto é capaz de reproduzir, o velho não resistiu. Mas sentiu-se bem ao trocar aquele um real pela promessa do garoto de ir a escola e tentar melhor de vida.

Um homem como ele não tinha muito, e achava, portanto, que não tinha que fazer muito. Talvez achou que tinha feito a sua parte pela humanidade ao ajudar aquele menino. Talvez tenha mesmo, aquele pobre e jovem mendigo fará muito pelo mundo.

De dever cumprido, era agora a sua hora de garantir o pão de cada dia. O serviço de entregador naquela repartição não lhe exigia muito. Office Boy diria um adolescente “Juventude!”, ele era só um entregador, simples e totalmente assim.

Enquanto esperava as primeiras ordens do dia teve tempo de pensar na vida. Das dificuldades que enfrentara até ali, “Um vencedor” lembrou. Não tinha uma sala com mesas classicamente velhas e computadores incompreensivelmente avançados, não precisava. Um cadeira de encosto côncavo ao lado da porta era mais do que necessário. “Um homem de guerra não precisava de confortos” lhe disse mais uma vez a voz beligerante que o acompanhara a vida toda.

A ordem e responsabilidade do dia veio em forma de um malote. Conhecia o endereço de entrega muito bem. Sorriu satisfeito ao lembrar que no caminho passaria pela praça central. Gostava de pássaros.

De sorriso aberto, mancou para a rua. As pernas já não estavam muito boas mais, mas o caminho não era longo.

Saudoso, satisfez-se ao lembrar que ainda gostava de pássaros.

3 comentários:

Anônimo disse...

confesso que o primeiro parágrafo me dasanimou(a descrição do banheiro..eca!talvez eu seja mt sensível..rss)mas ao continuar lendo, me deixei levar pelas situações...é, acho q seu texto cumpriu seu papel:me fazer estar ao lado do personagem principal, assitindo-o de perto,dentro das situações.continue!

Unknown disse...

Pô, Thiago, quem sou eu pra julgar literatura...Mas, como humilde opinião, eu gostei...Tem uma coisa que eu gostto muito, que é usar o ritmo do texto pra definir o caráter do personagem, o tipo de coisa que funciona, mas é dificil de fazer...Meio como deixar que o personagem dite a história e não você...No geral: gostei.

Anônimo disse...

Nossa, entrei aqui pra te zuar, vinda do blog do Jão, mas pô... o que é isso? Gostei, gostei muito.